Reconhecimento post mortem da filiação socioafetiva e seus efeitos sucessórios quando o falecido não possuía herdeiros necessários
- Toufic Ghazale
- 20 de jul.
- 5 min de leitura
Resumo
O presente artigo examina se – e em que condições – o reconhecimento judicial de um filho socioafetivo após o óbito (post mortem) pode alterar o destino da herança de quem, à data da morte, não tinha descendentes, ascendentes ou cônjuge. Parte‑se da moldura constitucional da igualdade entre filiações, percorre‑se a disciplina infraconstitucional e a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para demonstrar que a declaração tardia faz surgir um herdeiro necessário, deslocando a vocação hereditária originalmente aplicável. Conclui‑se que, comprovado o estado de posse de filho, a sucessão legítima deverá ser revista, ainda que já em fase de partilha, mediante sobrepartilha ou ação autônoma de petição de herança.
Palavras‑chave: filiação socioafetiva; reconhecimento post mortem; herdeiro necessário; petição de herança; sucessões.
1 | Filiação socioafetiva: bases normativas e principiológicas
A Constituição de 1988 consagrou a igualdade de filiação ao proibir “qualquer discriminação relativa à filiação” (art. 226, § 6º), abrindo espaço para a chamada parentalidade socioafetiva, que nasce da convivência contínua, pública e duradoura, acompanhada do animus de tratar o menor como filho. O Código Civil, nos arts. 1.593, 1.596 e 1.603‑1.609, admite a pluriparentalidade e reconhece a força jurídica da posse do estado de filho. A doutrina majoritária (Paulo Lôbo, Cristiano Chaves, Maria Berenice Dias) releva o afeto como fonte autônoma de parentesco, equiparando o filho socioafetivo ao biológico para todos os fins, inclusive sucessões.
2 | Reconhecimento post mortem da filiação socioafetiva
2.1 Possibilidade jurídica
O STJ vem afirmando, de forma reiterada, que “é viável o reconhecimento da filiação socioafetiva mesmo após a morte do pai ou da mãe, desde que comprovada a posse do estado de filho” – entendimento firmado já em 2016 e reiterado em precedentes posteriores. Superior Tribunal de Justiça
Em 11 de fevereiro de 2025, a 3ª Turma consolidou essa linha ao julgar o REsp 2.075.230, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, reconhecendo a filiação socioafetiva de um homem criado pelo falecido e determinando a inclusão de seu nome no registro civil, com pleno efeito sucessório e possibilidade de multiparentalidade.
2.2 Instrumentos processuais
O pretendente pode:
ajuizar ação declaratória de filiação (ou investigação de paternidade) cumulada com petição de herança;
propor as duas ações em apensos, com eventual suspensão da segunda; ou
ingressar apenas com petição de herança, discutindo a filiação como causa de pedir.
A Segunda Seção do STJ, sob o rito dos repetitivos (Tema 1200), definiu que o prazo prescricional da petição de herança é de dez anos, contados da abertura da sucessão, e não do trânsito em julgado do reconhecimento de filiação. IBDFAM
3 | Efeitos sucessórios na ausência de herdeiros necessários prévios
3.1 Qualificação como herdeiro necessário
Reconhecida a filiação, o art. 1.845 do CC torna o socioafetivo herdeiro necessário, posicionando‑o na primeira classe sucessória (art. 1.829, I). Isso provoca dois reflexos concretos:
Deslocamento da vocação hereditária — colaterais (irmãos, tios, sobrinhos) ou o Município/União (herança jacente ou vacante) são preteridos.
Retroatividade — pelo princípio da saisine (art. 1.784 CC), a transmissão da herança ocorre ex lege no momento da morte; logo, a qualidade de herdeiro retroage a essa data, independentemente de quando a sentença declaratória foi proferida.
3.2 Revisão da partilha e proteção de terceiros
Se o inventário ainda estiver em curso, o filho socioafetivo deve ser habilitado. Se já houver partilha homologada, caberá sobrepartilha (art. 2.015 CC e arts. 669‑670 CPC) ou ação de petição de herança para anular a partilha precedente, respeitando‑se bens já alienados a terceiros de boa‑fé nos termos dos arts. 1.792 e 1.245, §1º, CC.
3.3 Hipótese prática ilustrativa
Imagine‑se um empresário solteiro, sem pais vivos, cujos bens iriam a dois sobrinhos. Anos após o óbito, comprova‑se que ele criou e sustentou, desde a infância, a filha de sua companheira, tratando‑a como própria. A sentença declaratória transforma essa filha socioafetiva em descendente necessária; a sucessão passa a pertencer‑lhe integralmente, e os sobrinhos perdem a qualidade de herdeiros legítimos, salvo por doações ou contratos já consumados com terceiros de boa‑fé.
4 | Questões probatórias e segurança jurídica
Prova — predominam testemunhos, fotos, correspondências, dependência em IRPF, planos de saúde, pagamentos de escola, etc.; o ônus recai sobre o autor (art. 373, I, CPC).
Boa‑fé objetiva — pagamentos recebidos por collaterais de boa‑fé podem sujeitar‑se à repetição, mas o STJ costuma mitigar a devolução integral quando já consumidos em gastos necessários.
Prescrição — o decênio do Tema 1200 é decisivo; superado esse prazo, o direito hereditário perece, embora o status filiatório ainda possa ser declarado para fins pessoais.
5 | Conclusões
O reconhecimento post mortem da filiação socioafetiva é juridicamente possível e compatível com a igualdade constitucional das formas de filiação.
A decisão tem pleno efeito sucessório, criando um herdeiro necessário ex tunc e alterando o destino da herança mesmo quando, à data da morte, não existiam herdeiros necessários.
A tutela judicial equilibra a dignidade do filho socioafetivo e a segurança jurídica das relações patrimoniais por meio do prazo decenal da petição de herança e da proteção à boa‑fé de terceiros.
Recomenda‑se a formalização da filiação em vida para evitar litígios, mas, na ausência dela, a via post mortem permanece valiosa instrumento de justiça sucessória.
Exemplo Hipotético:
Etapa | Fatos relevantes | Consequências jurídicas | Dispositivos/precedentes aplicáveis |
1. Óbito | Em 4 jan 2025 falece Carlos (63 anos), solteiro, sem descendentes, ascendentes ou cônjuge. | Transmissão imediata da herança aos colaterais de 2º grau (irmãos) – art. 1.829, III, CC. | Princípio da saisine (art. 1.784 CC). |
2. Abertura do inventário | Em março 2025, os irmãos Ana e Roberto requerem inventário judicial, indicação de bens (apartamento avaliado em R$ 1,8 mi, saldo bancário de R$ 200 mil). | Juízo nomeia Roberto como inventariante; arrecadação dos bens e pagamento de dívidas. | Arts. 610, 615 e 618 CPC. |
3. Partilha provisória | Minuta de partilha igualitária (50 % para cada irmão) é juntada; Ministério Público concorda; sentença homologatória ainda não proferida. | Irmãos continuam possuidores, mas não titulares definitivos, pendente homologação. | Arts. 654‑655 CPC. |
4. Intervenção de terceiro | Em maio 2025, surge João (28 anos), neto da falecida irmã mais velha de Carlos (logo, sobrinho‑neto) alegando ter sido criado por Carlos “como filho” desde os 6 anos: dependente em IR, plano de saúde, fotos escolares, testemunhas. | João protocola Ação Declaratória de Filiação Socioafetiva cumulada com Habilitação no Inventário e Petição de Herança. | Precedentes STJ: REsp 2.075.230 (2025); Tema 1200 (2024). |
5. Incidente de habilitação | Juízo do inventário suspende homologação da partilha (art. 622, caput, CPC) e admite João como litisconsorte. | Inventário passa a ter potencial herdeiro de 1ª classe; colaterais poderão ser excluídos. | Art. 1.829, I → desloca vocação hereditária. |
6. Fase probatória | O juiz designa audiência, colhe testemunhas (professores, vizinhos), exige documentos: declarações de IRPF de Carlos (João como dependente), comprovantes de custeio de faculdade, fotografias com legendas “meu filho”. | Formado conjunto robusto de “posse do estado de filho” (art. 1.593 CC). | Doutrina: Paulo Lôbo, Maria B. Dias. |
7. Sentença declaratória | Em nov 2025, julgada procedente a ação: reconhecida a filiação socioafetiva ex tunc. | João torna‑se herdeiro necessário (art. 1.845 CC) – direito a 100 % da herança, pois é descendente e não há cônjuge. | Efeito retroativo à data do óbito (art. 1.784 CC). |
8. Impugnação dos irmãos | Ana e Roberto apelam, alegando ofensa à segurança jurídica e prescrição da petição de herança. | Tribunal mantém sentença: prazo decenal (Tema 1200) não transcorrido; prevalece dignidade filial. | STJ, Tema 1200: prazo de 10 anos da abertura da sucessão. |
9. Liquidação dos direitos | Inventário retoma curso: elaborada nova partilha atribuindo 100 % ao filho socioafetivo. Irmãos devem restituir eventuais frutos percebidos (interdictum de proveniendis) – art. 1.794 CC. | Possível compensação de benfeitorias necessárias demonstradas pelos irmãos. | Arts. 1.792‑1.793 CC. |
10. Registro final | Sentença e formal de partilha são levados ao Registro de Imóveis e instituições financeiras. | João passa a constar como proprietário e titular dos valores. | Art. 1.792 CC; art. 1.245 CC. |
Referências básicas – REsp 2.075.230/RJ, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11 fev 2025. Migalhas– STJ, Tema 1200 (REsp 2.029.809/MG), 2ª Seção, j. 4 jun 2024. IBDFAM– REsp (número sob sigilo), 3ª Turma, rel. Min. Villas‑Bôas Cueva, j. 19 abr 2016. Superior Tribunal de Justiça– ROCHA, Dandara C. M. Os efeitos sucessórios da adoção post mortem em contraponto ao reconhecimento da filiação socioafetiva no Brasil. UFAL, 2024. Repositório UFAL

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